O nome desta droga rodou em diversos grupos e conversas de WhatsApp e Telegram, mas não somente ali. Prescrições e mesmo a automedicação com ivermectina se multiplicaram durante a pandemia, e ainda há quem defenda seus efeitos na covid com unhas e dentes – ainda que a boa ciência já tenha demonstrado o contrário. Ao investigar a origem de toda esta fama, inclusive argumentando com seus defensores, somos inundados com links para “estudos” e periódicos que, para quem não tem intimidade com os meandros da pesquisa e publicação científica, passam facilmente como provas da eficiência da droga.
Essa reportagem vai abordar mais a fundo dois deles: o site ivmmeta.com e um artigo publicado na revista Cureus. O primeiro caso é mais gritante: o site é anônimo, não faz parte de nenhum periódico científico, além de violar as regras mais básicas da metodologia científica – inclusive com distorção estatística grotesca para quem entende um pouco do assunto. A conclusão forjada, mas propagada inclusive por médicos em vídeos na internet, é de que a chance da ivermectina não funcionar contra a covid é de 1 em 1 trilhão.
Já o segundo caso envolve artigo publicado em uma revista que vem sendo fortemente questionada pelo processo de revisão frágil: os próprios autores indicam os revisores, e o tempo de revisão de poucos dias foge totalmente ao que é considerado por especialistas o mínimo necessário para fazer uma verificação atenta. Os autores também ocultaram conflitos de interesse, como trabalhar para o laboratório que produz ivermectina no Brasil. Mais que a falta de credibilidade, há uma série de inconsistências graves no próprio artigo – e nos dados, como paciente com 119 anos e outro que consta como tendo tomado 6 mil comprimidos da droga – que, mais uma vez, levam ao resultado favorável para a ivermectina na covid, ao contrário do que estudos sérios apontaram.
Saiba como funciona o sistema de publicações científicas na área médica e por que estudos desacreditados sobre a ivermectina continuam servindo de justificativa para uso da droga na covid:
REVISÃO POR PARES
E por que elas são tão importantes? “O processo científico precisa de organização, protocolo. É só a partir do registro que é possível reproduzir uma pesquisa e confirmar aquela informação, por exemplo. As publicações, por sua vez, geram outras perguntas e novas pesquisas. Os estudos e seus resultados precisam ser públicos”, explica Bruno Caramelli, médico cardiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Depois, é preciso verificar se o estudo foi duplo cego, quando nem a pessoa que recebeu a intervenção, nem quem a avalia sabem se ela recebeu o medicamento ou o placebo. O cegamento serve para evitar ou diminuir a atribuição de resultados a uma droga, quando eles se devem, na verdade, ao efeito placebo, ou a um enviesamento de quem avalia. “O método científico é feito para nos proteger de nós mesmos, porque nós queremos que o resultado seja bom. Então você dá ivermectina para os seus pacientes no consultório, e eles ficam bons. Mas como você sabe que eles não ficariam bem se você não tivesse dado absolutamente nada para eles?”, complementa Tessler.
Um bom estudo que avalia tratamentos médicos em seres humanos, o ensaio clínico, no jargão da ciência, também deve ser randomizado no momento de incluir os participantes em cada um dos “braços”. Ou seja, os pacientes são colocados em um dos dois grupos de forma aleatória, sem escolha prévia, para que tanto o grupo que recebeu o tratamento quanto o que recebeu placebo tenham características semelhantes: idade, sexo, condições prévias de saúde, sociais, entre outras.
A revisão é dita por pares porque é feita por especialistas, assim como o autor da pesquisa, para conferir, dentro do texto, se há algum erro metodológico. “O papel da revisão é garantir que a produção científica tenha qualidade”, diz Caramelli.
A pandemia potencializou um problema com que a ciência se depara há alguns anos, principalmente após a popularização da internet. Se, por um lado, a multiplicação de periódicos representou algum avanço na democratização do acesso e divulgação do conhecimento científico, por outro, deu origem a uma série de publicações científicas (ou com cara de científicas) de baixíssima qualidade e alta tolerância para artigos metodologicamente ruins, quando não escritos a partir de dados fraudados. É neste tipo de revista que se insere a totalidade dos estudos que expõem como conclusão a eficácia da ivermectina contra a covid.
QUALIDADE
Quase nenhum fator que vamos elencar aqui, isolado, é garantia da qualidade de uma produção científica. Mas todos se complementam, e o primeiro indício é a qualidade do periódico onde a pesquisa foi publicada. Existem revistas predatórias, que têm uma revisão por pares fraca ou até mesmo inexistente, estando interessadas apenas em receber o valor que o autor paga para publicar ali. “Esse problema é anterior à pandemia, e uma das coisas que o explicam é a pressão, na carreira acadêmica, para que o cientista publique artigos. Ele depende de um volume de publicações para progredir e ter financiamento”, explica Ana Carolina Peçanha.
IMPACTO
O fator de impacto de uma revista diz quantas vezes, em média, um artigo publicado nela é citado em outros artigos. Ele é mais um indício da qualidade da revista. A mais famosa da área médica, o New England Jornal of Medicine, por exemplo, tem o mais alto fator de impacto entre todas as revistas científicas, maior que 90.
Ana Carolina Peçanha diz também que as revistas menos importantes ganharam algum empoderamento na crise da covid, e até aumentaram seu fator de impacto. “A própria revista tem interesse em publicar artigos com resultados extraordinários, que sejam polêmicos, mesmo que gerem críticas, pois geram citações”, afirma a pesquisadora.
Por fim, Alencar Neto destaca que os estudos têm objetivos diferentes, e por isso nem sempre um bom estudo estará nas maiores revistas. Mas se o artigo está num bom periódico, certamente tem mais chance de ser confiável.
QUESTÕES DE MÉTODO
Depois, é preciso verificar se o estudo foi duplo cego, quando nem a pessoa que recebeu a intervenção, nem quem a avalia sabem se ela recebeu o medicamento ou o placebo. O cegamento serve para evitar ou diminuir a atribuição de resultados a uma droga, quando eles se devem, na verdade, ao efeito placebo, ou a um enviesamento de quem avalia. “O método científico é feito para nos proteger de nós mesmos, porque nós queremos que o resultado seja bom. Então você dá ivermectina para os seus pacientes no consultório, e eles ficam bons. Mas como você sabe que eles não ficariam bem se você não tivesse dado absolutamente nada para eles?”, complementa Tessler.
Um bom estudo que avalia tratamentos médicos em seres humanos, o ensaio clínico, no jargão da ciência, também deve ser randomizado no momento de incluir os participantes em cada um dos “braços”. Ou seja, os pacientes são colocados em um dos dois grupos de forma aleatória, sem escolha prévia, para que tanto o grupo que recebeu o tratamento quanto o que recebeu placebo tenham características semelhantes: idade, sexo, condições prévias de saúde, sociais, entre outras.